Alerta: isso é um ponto de vista extremamente pessoal e a intenção não é ser dona da verdade, mas apenas apresentar um ponto de vista que para mim é sim uma verdade, e que embora minoritário, não é isolado. Também não significa que a universidade seja essa caca na sua completude, claro que não. É só uma de suas muitas faces.
Acabou. Depois de rodar muito e bater muita cabeça com dilemas pessoais e notações matemáticas, minha vida de pós-graduanda acabou. Eu dei um fim nela, e não foi defendendo uma dissertação não. Resolvi admitir, no último prazo possível, que essa vida não era pra mim. Até daria pra terminar a pesquisa, me sacrificar um pouco e defender a dissertação, obter o título, nem que fosse pra guardar o diploma na gaveta. Eu tinha apoio de família, amigos, colegas, orientador, e institucional também. Tinha tudo pra dar certo, não fosse o arrepio na espinha que dava toda vez que eu vislumbrava o trabalho que eu ia ter pra fazer uma coisa na qual eu não botava fé. Eu estava tomada de uma COMPLETA DESMOTIVAÇÃO. E a gente não se sente desmotivado pra fazer uma coisa que a gente quer muito. Eu não queria aquilo.
Minha falta de fé não era incredulidade na minha capacidade não. Paguei todas as disciplinas e fui aprovada em todas elas com nota razoável (porque, claro, eu não consigo ser espetacular quando faço uma coisa na marra). No final de cada semestre, concluía: poxa, se me arrastando eu consegui sair sã e salva, com um tanto mais de dedicação, sacrifício e boa vontade eu faria parte da elite da turma. Minha falta de fé vinha na desconexão entre o que acredito – em se tratando de ideais pessoais – e o funcionamento da academia.
Imagina uma máquina, tipo um relógio, com as engrenagens expostas, que começou pequena, organizada e limitada. Foram adicionando engrenagens e ela foi se tornando capaz de produzir mais coisas, e coisas mais significantes. E a brincadeira foi ficando legal, e adicionaram mais e mais engrenagens, de forma não planejada, cada um à luz do que achava certo, e muito mais gente foi tendo acesso a ela, e ela continua acelerando a produção, dessa vez cuspindo resultados um atrás do outro, alguns muito bons, outros só o resto, muitos manchados, e vários repetidos. Algumas peças eram arremessadas pra longe, ninguém sabe de onde veio, quem dá manutenção emprega esforços no lugar errado, e assim segue a máquina, acelerada, empenada, capenga, e funcionando. Isso, para mim, é a academia.
Sinceramente eu não esperava um ambiente de funcionamento perfeito, regras delineadas, todos obedientes e felizes. Universidade é justamente um ambiente onde as liberdades devem ser exaustivamente experimentadas, e onde não deve haver controle sobre todas as coisas, pois assim sendo não haveria produção útil e diversificada. Mas se é nas universidades que se faz ciência, eu esperava sim que ela fosse mais imparcial e honesta. <<Nota: imparcialidade é um conceito muito relativo, Ok. Cada aluno, seja na graduação ou na pós, ao final do curso defende um trabalho, que não deixa de ser um ponto de vista pessoal, baseado em outros pontos de vistas pessoais e fundamentado em alguma técnica que deu certinho pra demonstrar que ele tinha uma razão minimamente científica. A universidade, porém, é um conjunto de milhares de pontos de vista, e acaba, dessa forma, se tornando uma entidade imparcial. Ou pelo menos deveria.>>
Hoje a academia possui algumas práticas e vícios que me causam repulsa.
Já começa errado
O cenário geral mostra que temos uma educação de base fraca. Nem entrarei em detalhes de extremos como cidadãos que saem do ensino fundamental semi-analfabetos ou do sacrifício do corpo docente que carrega nas costas a responsabilidade de lecionar displinas e transformar criaturas em cidadãos. Com a facilitação do acesso a universidade – o que é ótimo – a qualidade do ensino superior cai, já caiu, ou cairá em breve – o que é péssimo – porque muitos dos entrantes não estão preparados para serem não só receptores mas também produtores de conhecimento. Ok, eles podem/vão aprender a crescer como estudantes na universidade. Mas enquanto eles podiam estar além, se tivessem tido uma educação de base boa, eles se limitam a obter aprovação em disciplinas, assim como era na escola. E na hora do trabalho de conclusão de curso, BANG!, a bomba explode, e os alunos se vêem completamente perdidos, pressionados pelo prazo quase esgotado, e criam qualquer coisa que os permitirá ser aprovados e colar grau. Não neguem, isso é bastante comum. E aí essa massa de recém formados vai pro mercado quase tão perdida quanto entrou na universidade, e passa a somar no universo de desempregados e de pessoas que trabalham numa coisa que não tem nada a ver com a formação que têm. Não neguem, isso não está certo.
Paper trip
No finalzinho da minha graduação produzi um artigo que me rendeu uma apresentação em um simpósio regional. Viajei para o litoral do meu Estado, sozinha, e assisti todas as palestras e apresentações dos dois dias do evento. Achei interessante ver aquele povo todo (e nem era tanta gente assim) participando daquele evento. Mal tinha eu idéia de que era a realização de conferências que movia o mundo acadêmico. Nada mais justo! Conferências são onde se faz intensamente aquilo que é a coisa mais valiosa de uma vida em sociedade: a troca de conhecimento. É onde se estabelecem contatos, parcerias, derrubam-se pesquisas fracas, têm-se novas idéias, enfim.
Existe porém um outro lado, que não é um problema se o propósito da viagem for cumprido: as conferências são uma opção de lazer para muitos alunos. As conferências mais importantes são realizadas em destinos turísticos tradicionais, hotéis luxuosos, e muitos dos participantes são patrocinados (com passsagens e hospedagens, principalmente) pelas suas universidades ou instituições de fomento à pesquisa. Ok, até aí tudo bem. O problema é quando o aluno está turistando enquanto a conferência está rolando. Claro que é um equívoco a pessoa ficar 100% enfurnada na conferência e não aproveitar para conhecer pessoas e lugares e se divertir. Mas é uma completa falta de ética o acadêmico patrocinado participar minimamente da conferência, como por exemplo quando só apresenta o trabalho dele ou no máximo vai também participar da apresentação dos colegas pra fazer volume. Isso existe? Rá! É mais comum do que você imagina, amiguinho.
Após voltarem de uma grande conferência internacional, dois colegas fizeram uma palestra sobre como foi a experiência deles, e que fruto eles trouxeram na bagagem, a pedido do orientador. O que de mais interessante um colega mostrou foi como eram as paradas de ônibus na cidade, e o outro colega relatou uma meia dúzia de observações sobre a apresentação dele. E só. E é porque a conferência durou uma semana. Nos corredores, as conversas sobre as festas e passeios que eles fizeram eram muito mais volumosas, e prendiam mais a atenção público. Agora me diz: como a academia vai pra frente, desse jeito? Vai pra frente sim, mas numa velocidade muito menor do que seria com o verdadeiro comprometimento de TODOS os seus membros.
A qualidade duvidosa dos artigos aprovados nas conferências
Quando recebemos um email de aprovação da submissão de um trabalho científico a uma revista/conferência, normalmente vem a informação da taxa de trabalhos aprovados. Isso significa que seu trabalho está entre os x % melhores de todos os trabalhos que foram submetidos, de acordo com a banca examinadora. Isso é bastante últil para nortear inclusive o nível de tal revista/conferência. Só que infelizmente não se pode confiar plenamente neste número. Há conferências que, a grosso modo, existem só para levantar dinheiro através das taxas de inscrições (geralmente muito caras) e que aprovam artigos aleatoriamente. São eventos de renome, com baixas taxas de aprovação, nota elevada no ranking oficial de avaliação de publicações, que porém não cooperam o avanço científico devido a essa fraude. E, infelizmente, a informação de se determinada conferência é falsa ou não é uma informação de bastidores, e só quem tá muito antenado e muito bem informado chega a saber de coisas assim. Ou seja: se você aprovar uma publicação em uma famosa conferência internacional de nota X qualquer coisa, não fique tão feliz assim. Você pode estar se iludindo por ter sido sorteado pra fazer parte dessa encenação.
Eu mesma já participei de um artigo cuja aprovação me pareceu meio estranha: era uma conferência internacional, e aos poucos percebi que a orientadora estava dando vários detalhes do evento, indicando nomes, dando dicas, etc., e depois descobrimos que todos os anos ela tinha publicações lá. Pode ser que tenha sido mérito mesmo, mas achei essa taxa de sucesso um tanto viciada. Na época reconhecíamos algumas falhas no nosso trabalho. Hoje eu leio o artigo e realmente não entendo o raciocínio que expusemos lá (não porque esqueci das coisas, pelo contrário, aprendi um pouco mais). Juntando o cenário todo, eu realmente diminui minhas expectativas em o quão espetacular pode ser aprovar um artigo numa conferência internacional de nota A2.
Os exemplos estão abstratos demais? Pois depois leia este artigo do Gizmodo: 120 artigos científicos foram criados em “gerador de lero-lero” e ninguém percebeu
As panelinhas nas conferencias
Eu já fui aconselhada para não submeter um certo trabalho numa conferência X ou Y (nacionais, detalhe), porque a comissão organizadora era um grupo um tanto fechado, e era muito complicado aprovar um trabalho com eles. Como assim?? Então se eu não faço parte da panelinha meu trabalho não vai entrar na conferência, mesmo se ele tiver melhor que os trabalhos do grupo? Minha gente, cadê a ciência, cadê a imparcialidade, cadê a lógica nisso?? Então eu tenho que jogar meu trabalho nos eventos internacionais – sem demérito deles, claro que não – porque a comunidade daqui se fecha para o conhecimento produzido aqui, das panelinhas rivais, pra descobrir quem produz mais, quem faz mais sucesso?? Me poupe, nunca achei esse joguinho legal (no sentido figurado e literal).
O milagre da multiplicação de artigos
É aquela história de “põe meu nome no teu trabalho que ponho o teu nome no meu”. E assim a pessoa tem participação em um maior número de artigos, mas não trabalhou na metade deles, talvez sequer saiba explicá-los. Pra quê as pessoas fazem isso? Financeiramente só quem ganha são os pesquisadores que recebem por produtividade: quanto mais publicações eles têm, mais dindin cai na conta. Quanto aos alunos, ganham status perante a comunidade por terem muitas publicações, e em algum processo seletivo vão ganhar pontos na análise curricular. Fora isso, essas pessoas ganham a minha reprovação, e a reprovação de mais um ou dois milhares de pessoas que acham isso realmente desonesto. E digo com orgulho que já me recusei de ter meu nome como co-autoria de artigos só por pertencer ao grupo ou por contribuir no máximo fazendo a revisão do texto. Agora, participar do processo criativo, mesmo sem fazer “trabalhos braçais” ou sem escrever uma palavra, isso sim acho digno de incluir a pessoa no rol de autores, e por isso eu acho até certo o orientador entrar como co-autor dos trabalhos do seu alunado.
O que fazemos de nossas bolsas
Esse assunto é sempre muito polêmico. Quando entrei no mestrado ganhava uma bolsa de R$ 1200,00, e usava esse dinheiro para pagar minhas despesas de sobrevivência: aluguel, transporte, alimentação e um minimo de lazer. Comprei livros? Não. Assinei periódicos? Não. Paguei cursos? Não. Em tese, a bolsa era pra isso, pra financiar meus estudos (embora me manter viva seja uma forma de possibilitar meus estudos 😛 ). O mesmo acontecia com meus amigos. E quem recebe bolsa não pode acumular com trabalho, com exceção de uma situação bem específica, mas muitos amigos trabalhavam, e moravam em outra cidade, o que também não podia. Pra mim os R$ 1200,00 bastavam (com muito controle), mas a maioria dos colegas tinha que manter uma segunda atividade para poder se sustentar. Aí veio um amento e passei a receber R$ 1350,00. Comprei livros? Assinei periódicos? Paguei cursos? Não, não e não. Eu podia ter sido uma aluna melhor se tivesse usado o dinheiro da bolsa com os estudos. Pelo menos eu segui as regras, e não tinha uma segunda atividade, eu era só estudante, embora não estudasse tanto quanto deveria.
Fui patrocinada e pulei fora
Isso mesmo. Eu recebi um ano de bolsa (que solicitei cancelamento assim que mudei de cidade e comecei a trabalhar, já que não era de acordo com as regras) e não concluí meu mestrado. O governo jogou dinheiro fora investindo em mim, embora enquanto eu recebia a bolsa eu tivesse cumprindo com meus deveres de bolsista. É preto no branco. Uma professora a menos no Brasil. Me sinto muito culpada por isso.
Se cale pois você ainda está nas mãos deles
Apesar de todo o ambiente favorável para a produção científica, a universidade ainda é uma instituição paternalista. Claro que tem suas exceções, mas faz uma breve pesquisa aí: quem é o aluno que tem coragem de “bater de frente” com o orientador? O orientador não tem esse nome à toa, ele realmente manja mais das coisas do que seus orientandos, mas estes normalmente não costumam discordar daqueles, ainda que seja para alimentar uma discussão saudável. O orientador diz: “submeta!“, o aluno tem que parar de comer e dormir pra entregar o trabalho no prazo. O orientador diz: “seu trabalho não me convenceu, você foi por esse caminho mas vá pelo outro“, pode colocar o rabinho entre as pernas e cuidar de fazer o que ele faz. E não reclame. Você pode é discordar, ter se matado pra ele fazer tão pouco caso do seu trabalho, mas ele é o seu orientador, então obedeça. E, se o orientador não diz nada, não faz nada: se vire, o trabalho é seu e não dele. Provoque-o. Muitas das coisas que ele faz e a gente discorda a gente vai entender e aceitar só lá mais pra frente. E outros pontos você vai ver que era você mesmo que estava com a razão. O melhor que você faz é tocar seus estudos e defender seu trabalho ao final do curso. E resta aos covardes – oi? – jogar a merda no ventilador só depois que essa relação de dependência acaba.
Nem tudo é treva
Claro que todas as pequenas e grandes descobertas nasceram desse celeiro tortuoso que é o mundo acadêmico. São necessárias muitas pesquisas e resultados ruins para que sejam feitas grandes descobertas (veja a notícia sobre a polêmica com pesquisas “diferentes” financiadas pelo governo americano). É necessário que muitos alunos medianos entrem na universidade para que os alunos bons possam ser descobertos. É necessário que muita gente perdida – oi? – entre na universidade para que as pessoas vocacionadas se encontrem em salvem o mundo acadêmico. Esse texto detona o sistema e é também uma auto-crítica. Mas espero que, tendo a humildade de reconhecer que meu universo não é esse, as pessoas que nasceram para ser pesquisadores e professores continuem tocando suas carreiras com dedicação e responsabilidade: o futuro do mundo depende de vocês. Enquanto isso sigo tentando me encontrar, ainda.